"Eu te aceito tal como és.
Pode ser que tenhas a mania de pôr no bolso as bugigangas de outro que te calham a jeito e que, por outro lado, tenhas queda para a poesia.
Receber-te-ei, portanto, por amor da poesia. Fecharei as minhas bugigangas de ouro, por as amar.
Pode ser que, à maneira das mulheres, consideres os segredos que te são confiados como diamantes para teu adorno. A mulher vai à festa, e o objeto raro que exibe torna-a gloriosa e importante.
Também pode acontecer que sejas bailarino. Receber-te-ei então por respeito à dança, mas guardarei os meus segredos, por os respeitar.
Pode ser que sejas simplesmente meu amigo. Receber-te-ei, pois, pelo amor que te tenho, tal como és. Se coxeias, não te pedirei que dances. Se odeias este ou aquele, não os inflingirei como convivas. Se tens necessidade de alimento, servir-te-ei. Não me passará pela cabeça dividir-te para te conhecer. Tu não és este ou aquele ato, nem a soma deles. Nem esta, nem aquela palavra, nem a soma delas. Não te julgarei nem por estas palavras nem por esses atos. Julgarei esses atos e essas palavras segundo aquilo que tu és.
Exigirei, em paga, que me atendas. Não tenho nada a fazer do amigo que não me conhece e pede explicações. Não tenho o poder de me fazer transportar no débil vento das palavras. Eu sou montanha. A montanha pode-se contemplar. Mas o carrinho de mão não a oferecerá.
Como é que hei de te explicar aquilo que não é o amor antes antes de o ouvirdes? E, muitas vezes, como é que hei de falar?
Há palavras indecentes. Foi o que já te disse a respeito dos meus soldados no deserto. Olho para eles em silêncio, nas vésperas de combate. O império repousa sobre eles. Eles morrerão pelo império, e a sua morte ser-lhes-á paga nessa troca.
Conheço, portanto, o autêntico fervor que eles têm. Que me ensinará o vento das aplavras? Que eles se queixam das silvas, que eles odeiam o cabo, que a comida é pouca? Que o seu sacrifício é amargo? ...Assim devem eles falar! Eu desconfio do soldado lírico demais. Se ele deseja morrer pelo cabo, é muito provável que não venha a morrer, tão ocupado estará em te debitar o seu poema.
Eu desconfio da lagarta que se julga apaixonada pelas asas. Essa não há de morrer para si própria na crisálida.
Mas, surdo ao vento das palavras do meu soldado, vejo quem ele é, não quem ele diz. Esse soldado, durante o combate, protegerá o cabo com o peito.
O meu amigo é um ponto de vista. Eu tenho necessidade de ouvir falar o que ele fala, porque descubro nisso um império particular e provisão inesgotável. Ele pode até calar-se, que nem por isso deixará de me cumular. Considero então segundo ele o mundo, e passo a vê-lo de maneira diferente. Também exijo ao meu amigo que saiba, primeiro, do que é que eu falo. Só então ele me entenderá. Porque as palavras sempre se repelem."
- Em Cidadela por Antoine de Saint-Exupéry
quarta-feira, 5 de novembro de 2008
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